Ainda é adequado se falar de mortificação?


Entrevista com o padre José Roberto Palau, autor de uma tese sobre o tema Por Alexandre Ribeiro

Ainda é adequado se falar de mortificação, mesmo que este termo suscite imagens negativas de penitências exageradas e até autoflagelações?

Para discutir o tema, Zenit entrevistou o padre José Roberto Fortes Palau. O sacerdote é doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e autor de uma tese doutoral sobre a mortificação.

–Por que a repulsa ao termo mortificação?

–Padre José Roberto Palau: É que de imediato o termo mortificação suscita lembranças negativas, como jejuns e penitências exageradas. Recorda também episódios de violência ao corpo. Por isso, é uma palavra que prontamente provoca fortíssima rejeição e aversão, devido a uma prática, no passado, inconteste de excessos e abusos. A mortificação foi erroneamente interpretada, por várias gerações de cristãos, como morte literal ao corpo. Era preciso fazer morrer o corpo, pois ele era compreendido como fonte dos pecados. Ou melhor, era sinônimo de pecado. O corpo era visto como a sede das paixões, a parte inferior do homem, em contínua oposição à parte superior, a alma. No contexto deste esquema ascético inspirado no dualismo neoplatônico e no rigor do estoicismo – esquema que prevaleceu por muitos séculos na ascética cristã – era obrigatoriamente necessário castigar o corpo para não pecar. Assim, neste terreno fértil, surgiu e desenvolveu-se a mentalidade religiosa que concebia o corpo como um inimigo a ser combatido. Muitos cristãos cometeram verdadeiras atrocidades contra seus corpos. A Idade Média foi pródiga na aplicação das idéias estóicas e neoplatônicas às práticas ascéticas. Foi o período das mais duras e extravagantes asceses corporais. O importante era imitar, reproduzir na própria vida os sofrimentos de Cristo. Em consequencia disso, novas formas de penitência corporais foram inventadas, e outras, já existentes, como a ‘disciplina’ (autoflagelação voluntária), foram aperfeiçoadas. Pelo fim da Idade Média, a 'disciplina' cotidiana foi levada ao fanatismo pelos “flagelantes”, que eram os membros de movimentos e confrarias medievais que praticavam a penitência com flagelações públicas. Esse movimento teve seu ponto alto na segunda metade do século XIII. Esses grupos de pessoas percorriam cidades e campos flagelando-se a si mesmos ou uns aos outros enquanto rezavam.

–O testemunho de uma religiosa o despertou para uma visão positiva da mortificação?

–Padre José Roberto Palau: Sim. Trata-se da Madre Maria Teresa de Jesus Eucarístico (1901-1972), fundadora do Instituto das Pequenas Missionárias de Maria Imaculada, na cidade de São José dos Campos (São Paulo). Ela foi influenciada pela teologia da infância espiritual, de Santa Teresa de Lisieux. Também a sua frágil saúde não lhe permitia praticar penitências exageradas. Madre Maria Teresa compreendeu que o verdadeiro sentido da mortificação não estava na prática de jejuns rigorosos, abstinências, cilícios, prostrações e outras penitências corporais, mas no esforço para disciplinar a vontade humana, tornando-a gradativamente capaz de aderir às exigências do evangelho. Tanto que as Constituições do Instituto das Pequenas Missionárias não prescrevem atos de mortificação, mas espírito de mortificação. Quando a Madre Teresa dá esse passo à frente, ela se preocupava com as pessoas doentes, especialmente os tuberculosos, queria curar o corpo dessas pessoas.

–A mortificação continua a existir hoje?

–Padre José Roberto Palau: A mortificação continua existindo e desfrutando de amplo espaço no cotidiano de nosso povo. Evidentemente, não o termo, mas a vida disciplinada, que se constitui no núcleo, propriamente, da prática da mortificação. Uma vida regulada por dietas, exercícios físicos e até jejuns é assunto relevante para a cultura contemporânea. A disciplina é um dado fundamental da existência humana. É um imperativo antropológico, algo que não pode ser simplesmente eliminado, sem graves prejuízos ao ser humano. Para se realizar objetivos, independentemente da motivação originária, é indispensável o esforço pessoal, uma vida pautada pela disciplina. A mortificação, em sentido amplo, é isso: luta de morte a tudo aquilo que obstrui a obtenção de um ideal, que atrapalha a consecução de uma meta. Por essa razão, a mortificação é parte integrante da educação humana.

–Qual é a chave para uma nova interpretação da teologia da mortificação?

–Padre José Roberto Palau: O termo “mortificação” tem sua origem em Colossenses 3, 5. Logo no início desta perícope (versículo 5), o autor conjuga o verbo “mortificar”, no modo imperativo aoristo, em grego “necrósate”, que significa literalmente “mortificai-vos”, ou seja, “dai morte”, “fazer morrer”. Só que este verbo está inserido no contexto integral da perícope, que retoma o argumento principal da teologia paulina de Romanos 6, 1-11, cujo tema é a morte do “homem velho”. Deste modo, o verbo mortificar, interpretado à luz desta catequese batismal, assume a significação de morte, não ao corpo, mas a uma existência pecaminosa. Portanto, literalmente, o termo mortificação significa morte ao pecado, ao “homem velho”. É um termo derivado da própria dinâmica batismal. Porém, existe um detalhe de suma importância na dinâmica batismal: a graça santificante cria o “homem novo”, mas seu desenvolvimento não ocorre automaticamente, pois é imperativa a colaboração humana. Desse modo, como bem alerta São Paulo, existe o risco real da graça ser desperdiçada (cf. 2 Cor 6, 1). O que significa a mortificação: você colaborar com a graça para que o “homem novo” cresça e o “homem velho” morra. Na realidade, a teologia da mortificação é a teologia do batismo. Daí se resgata o verdadeiro sentido de mortificação: não é morte ao corpo, mas morte ao “homem velho”. A nossa vida é uma constante luta para que o “homem novo” cresça e o “homem velho” morra.

–Como se pode viver essa teologia da mortificação hoje?

–Padre José Roberto Palau: A mortificação é o desenvolvimento da graça batismal. Com a graça batismal, se recebem as três virtudes teologais: fé, esperança e caridade. Diante disso, o “homem novo” cresce com o desenvolvimento das virtudes teologais. Exemplo de mortificação da fé: aceitar entregar-se aos próprios limites, já que a relação sadia da pessoa consigo mesma é formada basicamente pela aceitação --sem que isso signifique resignação passiva-- e valorização de si. Outro exemplo: superar as falsas imagens de Deus, já que muitas vezes construímos a imagem de Deus da qual necessitamos. Um outro exemplo ainda de mortificação da fé: assumir a fragmentariedade da história. A história é fragmentada, pois é uma realidade marcada pela morte, pelo mal, pela injustiça, enfim, realidade constituída pela finitude e pela contingência. Não se deve negar este fato. No entanto, a grande tentação hoje é fugir para um “espiritualismo evasivo”, ou seja, utilizar a fé em Deus como uma “droga” que aliena dos problemas cotidianos. A mortificação da esperança. Por exemplo, o compromisso com a justiça. Quando muitas vezes a injustiça prevalece, continua-se ali lutando pela justiça, sendo honesto, num mundo onde tantos são desonestos. Outro exemplo: o testemunho da alegria pascal. A alegria do cristão tem seu fundamento teológico na ressurreição de Cristo, que lhe assegura vida verdadeira no tempo e além do tempo. Exemplos da mortificação da caridade: amar sem discriminação, perdoar sempre, a hospitalidade.

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